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sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

A Culpa é das Estrelas - Capitulo 4

Deitei cedo aquela noite, depois de trocar de roupa, colocar um short, uma camiseta e me enfiar debaixo das cobertas na minha cama de casal enorme, cheia de travesseiros — de todos os lugares no mundo, o meu preferido. Então comecei a ler Uma aflição imperial pela milionésima vez.
UAI é sobre uma menina chamada Anna e sua mãe de um olho só —uma paisagista obcecada por tulipas. As duas levam uma vida típica de classe média baixa numa cidadezinha da Califórnia, até que um dia a Anna é diagnosticada com um tipo raro de leucemia.
Mas esta não é uma história de câncer, porque livros assim são um horror. Tipo, em livros com histórias de câncer, a pessoa que tem o câncer abre uma instituição de caridade para arrecadar dinheiro e ajudar na pesquisa da cura da doença, certo? E o comprometimento com a caridade faz com que essa pessoa seja relembrada da bondade inerente ao ser humano, e se sinta amada e encorajada porque deixará um legado para a erradicação do câncer. Mas, no UAI, a Anna resolve que ser uma pessoa com câncer que abre uma instituição de caridade para ajudar nas pesquisas da própria doença é um tanto narcisista, então monta uma instituição chamada Fundação Anna para Pessoas com Câncer que Querem Curar o Cólera.
Além disso, a Anna é honesta em todos os aspectos, de um jeito que ninguém mais é de verdade: durante todo o livro ela se refere a si mesma como um efeito colateral, o que está absolutamente certo. Crianças com câncer são, no fundo, efeitos colaterais da mutação incessante que tornou a diversidade da vida na face da Terra possível. Aí, no decorrer da história, ela adoece ainda mais, a doença e os tratamentos competindo para ver quem a mata primeiro, e a mãe se apaixona por um vendedor de tulipas holandês que a Anna chama de o Homem das Tulipas Holandês. O Homem das Tulipas Holandês tem muito dinheiro e ideias bastante excêntricas a respeito de como tratar o câncer, mas a Anna acha que esse cara pode ser um vigarista e que talvez não seja nem mesmo holandês, e aí, no momento em que o provável holandês e a mãe dela estão prestes a se casar, e Anna está à beira de iniciar um novo tratamento doido envolvendo grama de trigo e pequenas doses de arsênico, o livro termina bem no meio de uma.
Sei que essa é uma decisão bastante literária, e tal, e muito provavelmente parte do motivo pelo qual eu amo tanto esse livro, mas há um certo atrativo nas histórias que terminam. E se não dá para terem um fim, então pelo menos deveriam continuar indefinidamente, como as aventuras do pelotão do Sargento Max Mayhem.
Entendi que a história acabou porque a Anna morreu ou ficou tão mal que não conseguiu mais escrever, e que essa coisa de interromper a frase no meio pretendia refletir o modo como a vida acaba de verdade, e sei lá o quê, mas havia outros personagens além da Anna, e parecia injusto eu não poder saber o que aconteceu com eles. Escrevi, por intermédio do editor dele, várias cartas para o Peter Van Houten, cada uma pedindo respostas para perguntas relativas ao que acontece após o término do livro: se o
Homem das Tulipas Holandês é um vigarista, se a mãe da Anna acaba se casando com ele, o que acontece com o hamster da Anna (que a mãe odeia), se os amigos da Anna concluem o ensino médio… essas coisas.
Mas ele nunca respondeu a nenhuma das minhas cartas.
UAI foi o único livro escrito por Peter Van Houten, e tudo o que as pessoas pareciam saber a respeito do autor era que depois do lançamento do livro ele se mudou dos Estados Unidos para a Holanda e passou a viver recluso. Imaginei que ele estaria trabalhando numa continuação da história, ambientada na Holanda — talvez a mãe da Anna e o Homem das Tulipas Holandês tivessem se mudado para lá e estivessem tentando
começar uma vida nova. Mas já fazia dez anos que Uma aflição imperial tinha sido lançado, e depois disso o Van Houten não publicou nenhum post num blog sequer. Eu não poderia esperar para sempre. Enquanto lia o livro aquela noite, de vez em quando me distraía ao imaginar o Augustus Waters lendo as mesmas palavras que eu. Será que estava gostando, ou tinha parado no meio por achar o livro pretensioso? Aí me lembrei da promessa que fiz de ligar para ele assim que terminasse O preço do alvorecer, então peguei o número do telefone na primeira página do livro e mandei um torpedo para ele.
Opinião sobre O preço do alvorecer: muitos corpos. Quantidade insuficiente de adjetivos. Como vai o UAI?

Ele respondeu um minuto depois:
Se lembro bem, você prometeu me LIGAR quando terminasse de ler o livro, e não me mandar um SMS.
Aí eu liguei.
— Hazel Grace — ele disse ao atender.
— Você leu tudo?
— Não acabei ainda. O livro tem seiscentas e cinquenta e uma páginas e eu só tive vinte e quatro horas.
— Até onde chegou?
— Página quatrocentos e cinquenta e três.
— E?
— Nada de opiniões antes do fim. Mas tenho de admitir que estou meio envergonhado de ter dado O preço do alvorecer para você ler.
— Não fique. Já estou no Réquiem para Mayhem.
— Um acréscimo brilhante à série. Então tá, me diga, o cara das tulipas é um vigarista ou não é? Estou tendo um mau pressentimento com relação a ele.
— Nada de estragar o suspense — eu disse.
— Se ele for qualquer coisa diferente de um completo cavalheiro, vou arrancar os olhos dele fora.
— Então você está gostando do livro.
— Nada de opiniões antes do fim! Quando posso ver você?
— Com certeza, não até terminar Uma aflição imperial. — Eu adorava fazer jogo duro.
— Então é melhor eu desligar e começar a ler.
— Melhor mesmo — falei, e o telefonema acabou ali.
Paquerar era uma coisa nova para mim, mas eu estava gostando.

Na manhã seguinte eu tinha aula de Poesia Norte-americana do Século XX no MCC. Uma professora bem mais velha conseguiu falar noventa minutos da Sylvia Plath sem citar uma palavra da Sylvia Plath.
Quando saí da aula, mamãe estava parada no meio-fio na frente do prédio.

— Você ficou esperando aqui o tempo todo? — perguntei quando ela se apressou em me ajudar a puxar o carrinho e o cilindro para dentro do carro.
— Não. Peguei algumas roupas na lavanderia e fui à agência dos correios.
— E depois?
— Trouxe um livro para ler — ela disse.
— E sou eu quem precisa viver a minha vida. — Sorri, e ela tentou sorrir também, mas havia algo estranho em seu sorriso. Depois de alguns segundos, falei: — Que tal um cineminha?
— Boa ideia. Tem alguma coisa que você queira ver?
— Vamos fazer o de sempre: ir até lá e assistir ao filme que estiver para começar.
Ela fechou a porta do carro para mim e andou até o lado do motorista.
Fomos ao cinema Castleton e assistimos a um filme 3-D sobre roedores falantes. No fim das contas, o filme até que era engraçado.


Quando saímos do cinema, vi que tinha recebido quatro torpedos do Augustus.
Diga que meu exemplar veio com as últimas vinte páginas faltando ou algo assim.
Hazel Grace, diga que eu não cheguei ao fim deste livro.
AI MEU DEUS ELES SE CASAM OU NÃO AI MEU DEUS O QUE É ISSO
A Anna morreu e a história acabou, é isso? CRUEL.
Ligue para mim quando puder. Espero que esteja tudo bem.
Então, quando cheguei à minha casa, fui direto para o quintal, me sentei numa cadeira de vime trançado meio velhinha que havia na varanda, e liguei para ele. O dia estava nublado, como sempre está em Indiana: o tipo de clima que deixa qualquer um deprimido. Ocupando quase toda a área do quintal ficava o balanço que eu usava na infância, e que agora tinha uma aparência toda alagada e patética.
O Augustus atendeu no terceiro toque.

— Hazel Grace — falou.
— Seja bem-vindo à doce tortura que é ler Uma aflição… — Parei ao ouvir um choro convulsivo do outro lado da linha. — Você está bem? — perguntei.
— Ah, maravilha — o Augustus respondeu. — Mas estou aqui com o Isaac, que está meio descompensado. — Mais choro. Como o grito de morte de algum animal ferido. O Gus deu atenção para o Isaac. — Cara. Cara. A Hazel do Grupo de Apoio ajuda ou atrapalha? Isaac. Preste. Atenção. Em. Mim. — Um minuto depois o Gus me perguntou: — Você pode vir até a minha casa em mais ou menos vinte minutos?
— Claro — respondi, e desliguei.

Se desse para ir em linha reta, eu levaria só uns cinco minutos da minha casa até a do Augustus de carro, mas não dá porque o Holliday Park está entre nós.
Mesmo sendo uma inconveniência geográfica, eu gostava muito do Holliday Park. Quando era pequena, costumava brincar no rio White com o papai, e sempre havia um momento fantástico em que ele me lançava no alto, me jogando para longe, eu esticava os braços durante o voo e papai,os dele, e então ambos víamos que nossos braços não iriam se tocar e que ninguém iria me pegar, o que nos assustava da melhor maneira possível, e aí eu, as pernas agitadas no ar, mergulhava na água e depois subia para respirar, ilesa, a corrente me levando de volta para ele enquanto eu dizia de novo, papai, de novo.
Estacionei na entrada de carros ao lado de um Toyota preto meio antigo modelo sedã. Imaginei que fosse o carro do Isaac. Levando o cilindro no carrinho atrás de mim, andei até a porta de entrada. Bati. O pai do Gus atendeu.

— Só Hazel — exclamou. — Que bom ver você.
— O Augustus disse que eu poderia vir aqui.
— É. Ele e o Isaac estão no porão. — Naquele momento ouvi um choro vindo lá de baixo.
— E esse é o Isaac — disse o pai do Gus, balançando a cabeça devagar. — Cindy precisou sair para dar uma volta de carro. O barulho… — ele falou, divagando. — Bem, de qualquer maneira, acho que você está
sendo requisitada lá embaixo. Posso carregar seu cilindro? — ele perguntou.
— Não precisa, estou bem. Obrigada mesmo assim, Sr. Waters.
— Mark — ele disse.
Eu estava meio com medo de descer. Ouvir gente chorando convulsivamente não é um dos meus passatempos favoritos. Mas fui mesmo assim.
— Hazel Grace — disse o Augustus ao ouvir o ruído dos meus passos. — Isaac, a Hazel do Grupo de Apoio está descendo. Hazel, só para lembrar: o Isaac está no meio de um surto psicótico.
O Augustus e o Isaac estavam sentados em poltronas em formato de L, daquelas próprias para se jogar videogame, olhando para cima, para uma televisão gigantesca. A tela estava dividida entre o ponto de vista do Isaac, à esquerda, e o do Augustus, à direita. Eles eram soldados em guerra numa cidade contemporânea toda bombardeada. Reconheci o cenário como sendo o de O preço do alvorecer. Ao me aproximar, o que vi não tinha nada de anormal: só dois caras sentados, banhados pela luz de uma
televisão enorme, fingindo matar pessoas.

Só quando fiquei bem ao lado deles pude ver o rosto do Isaac. Lágrimas corriam num fluxo contínuo por suas bochechas vermelhas, a cara dele uma máscara de dor. Ele olhava vidrado para a tela, sem virar nem um instantinho na minha direção, aos prantos, o tempo todo apertando os botões do controle.
— Está tudo bem, Hazel? — perguntou o Augustus.
— Estou bem — respondi. — Isaac?
Nenhuma resposta. Nem mesmo uma pista que determinasse se ele estava ou não consciente da minha presença ali. Só lágrimas descendo pelo rosto e encharcando a camiseta preta.
O Augustus tirou os olhos da tela só por um instante.
— Você está bonita — ele disse. Eu usava um vestido que ia até um pouquinho abaixo dos joelhos e que eu tinha há séculos. — As garotas pensam que só podem usar vestidos em ocasiões formais, mas eu gosto da mulher que diz, tipo: Estou indo ver um cara em meio a um colapso nervoso, um cara cuja ligação com o sentido da visão é tênue, e, que se
dane, vou usar esse vestido para ele.
— E mesmo assim — falei — o Isaac não é nem capaz de dar uma olhada rápida em mim. Apaixonado demais pela Monica, só pode ser. — Comentário esse que resultou num choro catastrófico.
— Este é um assunto delicado — o Augustus explicou. — Isaac, não sei por você, mas tenho a vaga impressão de que estamos sendo flanqueados. — E voltou a falar comigo: — O Isaac e a Monica não são mais um casal, mas ele não quer falar sobre isso. Só quer chorar e jogar Counterinsurgence 2: O preço do alvorecer.
— É justo — falei.
— Isaac, estou começando a ficar preocupado com a nossa localização. Caso concorde com isso, vá até aquela usina termoelétrica, e eu cubro você.
O Isaac correu para uma construção indistinta enquanto o Augustus atirava enlouquecidamente com uma metralhadora, numa série de rajadas rápidas, e corria atrás dele.
— De qualquer forma — o Augustus se dirigiu a mim —, não vai fazer nenhum mal falar com ele. Se tiver alguma palavra sábia, algum conselho feminino.
— Para falar a verdade, acho que a reação dele é, provavelmente, a mais apropriada — comentei, enquanto uma rajada da metralhadora do Isaac matou um inimigo que havia colocado a cabeça para fora da carcaça incendiada de um caminhão.
O Augustus fez que sim com a cabeça, ainda olhando para a tela.
— A dor precisa ser sentida — ele disse, e esta era uma frase do Uma aflição imperial. — Você tem certeza de que não há ninguém atrás de nós? — ele perguntou ao Isaac. Momentos depois, balas traçantes começaram a zumbir acima da cabeça deles. — Ai, que droga, Isaac — o Augustus disse. — Não quero criticar você num momento tão sensível como esse, mas deixou que fôssemos flanqueados, e agora não há nada entre os terroristas e a escola.
O personagem do Isaac partiu correndo na direção do fogo cruzado, ziguezagueando por uma passagem estreita.
— Vocês poderiam atravessar a ponte e dar a volta por trás — palpitei, uma tática que conhecia graças à minha leitura de O preço do alvorecer.
O Augustus suspirou.
— Infelizmente, a ponte já está sob o controle dos rebeldes devido à estratégia questionável do meu parceiro desconsolado aqui.
— Eu? — o Isaac disse, ofegante. — Eu?! Foi você quem sugeriu que nos metêssemos no raio da usina termoelétrica. Gus desviou o olhar da tela por um segundo e deu seu sorriso torto para o Isaac.
— Eu sabia que você conseguia falar, meu chapa — ele disse. —
Agora vamos salvar alguns estudantes mirins ficcionais.
Juntos, eles correram pela passagem estreita, atirando e se escondendo nos momentos certos, até chegarem a uma escola de um andar só e com apenas uma sala. Eles se agacharam atrás de uma parede do outro lado da rua e acertaram os inimigos, um a um.
— Por que eles querem entrar na escola? — perguntei.
— Pretendem fazer as crianças de reféns — o Augustus respondeu.
Os ombros dele estavam curvados e ele apertava os botões do controle, os antebraços rijos, as veias visíveis. O Isaac se inclinou para a frente, para a tela, o controle dançando na mão fina de dedos finos.
— Vai vai vai — o Augustus disse.
Ondas de terroristas continuaram surgindo, e eles dizimaram todos, os tiros surpreendentemente precisos, como tinham de ser, para que não acabassem atirando na escola.
— Granada! Granada! — o Augustus gritou quando alguma coisa passou desenhando um arco pela tela, quicou no caminho que levava à entrada da escola e então rolou, parando encostada na porta.
O Isaac largou o controle, de tão frustrado.
— Se esses desgraçados não conseguirem fazer reféns, vão matar todos eles e colocar a culpa em nós.
— Isaac, me cubra! — o Augustus falou ao pular de trás da parede e correr na direção da escola.
O Isaac pegou de volta o controle, sem jeito, e começou a atirar enquanto choviam balas em cima do Augustus, que foi atingido uma vez e depois duas, mas continuou a correr, gritando: "VOCÊS NÃO PODEM MATAR MAX MAYHEM!", e com uma combinação final e afobada de apertos nos botões ele mergulhou em cima da granada, que detonou. Seu corpo desmembrado explodiu como um gêiser e a tela ficou toda vermelha. Uma voz gutural disse: "MISSÃO FRACASSADA", mas o Augustus não parecia concordar com isso enquanto sorria, vendo seus restos mortais na tela. Ele enfiou a mão no bolso, pegou um cigarro e colocou-o entre os dentes.
— Salvamos as crianças — ele disse.
— Por enquanto — observei.
— Todo salvamento é temporário — o Augustus retrucou. — Eu proporcionei a elas mais um minuto. Talvez esse seja o minuto que vai proporcionar a elas mais uma hora, que é a hora que vai proporcionar a elas mais um ano. Ninguém vai dar a elas uma quantidade infinita de tempo, Hazel Grace, mas a minha vida deu a elas mais um minuto. E isso não é pouco.
— Opa, peraí — eu disse. — Estamos falando de pixels aqui. Ele deu de ombros, como se acreditasse que o jogo pudesse ser realmente de verdade. O Isaac estava chorando de novo. O Augustus se virou para ele:
— Vamos tentar completar a missão mais uma vez, cabo?
O Isaac fez que não. Ele se inclinou pela frente do Augustus para olhar para mim e disse, as cordas vocais exigidas ao extremo:
— Ela não quis deixar para depois.
— Ela não quis terminar o namoro com um cara cego — falei. Ele concordou, as lágrimas caindo na cadência de um metrônomo silencioso: constante, interminável.
— Ela disse que não conseguiria lidar com isso — o Isaac falou. — Estou prestes a perder a visão e ela não consegue lidar com isso.
Eu fiquei pensando no verbo lidar, e em todas as coisas não lidáveis com que se tem de lidar.
— Sinto muito — falei.
Ele enxugou o rosto todo molhado na manga da camisa. Por trás dos óculos, os olhos do Isaac pareciam tão grandes que tudo mais no rosto dele meio que desaparecia, e ficavam só aqueles dois olhos flutuantes e incorpóreos olhando para mim: um de verdade, um de vidro.
— Isso é inaceitável — ele me disse. — Isso é totalmente inaceitável.
— Bem, para ser honesta — falei —, quer dizer, ela não deve mesmo conseguir lidar com isso. Você também não, mas ela não precisa. E você, sim.
— Eu ficava dizendo "sempre" para ela hoje, "sempre, sempre, sempre", e ela só continuava falando ao mesmo tempo que eu, sem me escutar, e não disse "sempre" para mim. Era como se eu não estivesse mais ali, sabe? "Sempre" era uma promessa! Como é que você pode não cumprir uma promessa desse jeito?
— Às vezes as pessoas não têm noção das promessas que estão fazendo no momento em que as fazem — falei.
O Isaac me lançou um olhar ferino.
— Tá, tem razão. Mas você cumpre a promessa mesmo assim. Amar é isso. Amar é cumprir a promessa mesmo assim. Você não acredita em amor verdadeiro?
Não respondi. Não tinha uma resposta para aquela pergunta. Mas tive a sensação de que se o amor verdadeiro existisse, aquela seria uma definição bastante boa para ele.
— Eu acredito em amor verdadeiro — o Isaac disse. — Eu amo a
Monica. E ela fez uma promessa. Ela me prometeu para sempre. Ele ficou de pé e deu um passo na minha direção. Eu me levantei, achando que ele queria um abraço ou coisa assim, mas aí ele simplesmente deu meia-volta, como se não conseguisse se lembrar de por que tinha ficado em pé, e então o Augustus e eu vimos uma expressão de ódio tomar conta do rosto dele.
— Isaac — o Gus disse.
— O quê?
— Você parece um pouco… Não leve a mal o duplo sentido, amigo, mas há algo preocupante no seu olhar.
De repente, o Isaac começou a chutar enlouquecidamente a poltrona do videogame, que deu uma cambalhota para trás e foi parar perto da cama do Gus.
— E lá vamos nós — disse o Augustus. O Isaac seguiu a poltrona e chutou a coitada mais uma vez. — Isso aí — falou o Augustus. — Atrás dela. Chute a poltrona até não poder mais!
O Isaac chutou a poltrona de novo, até que ela bateu na cama do Gus, e aí ele pegou um dos travesseiros e começou a bater com ele na parede entre a cama e a prateleira de troféus. O Augustus olhou para mim, o
cigarro ainda na boca, e deu aquele sorrisinho típico dele.
— Eu não consigo parar de pensar naquele livro.
— Nem me fale!
— Ele nunca disse o que acontece com os outros personagens?
— Não — respondi. O Isaac ainda estava batendo na parede com o travesseiro. — Ele se mudou para Amsterdã, o que me fez imaginar que talvez estivesse escrevendo a continuação da história, com o Homem das Tulipas Holandês como personagem principal, mas ele não publicou nada.
Ele nunca é entrevistado. E não parece estar on-line. Já escrevi várias cartas perguntando o que acontece com todo mundo, mas ele nunca responde. Então… é isso.
Parei de falar porque o Augustus não parecia mais estar prestando atenção. Em vez disso, olhava para o Isaac com os olhos semicerrados.
— Espere um instante — ele murmurou para mim, andou até onde o
Isaac estava e o agarrou pelos ombros. — Cara, travesseiros não quebram.
Tente alguma coisa que quebre.
O Isaac pegou um troféu de basquete da prateleira acima da cama e o segurou no alto da cabeça, como se esperasse uma permissão. — Isso — o Augustus disse.
— Isso! — O troféu se espatifou no chão, o braço de plástico do jogador de basquete separado do corpo, ainda segurando a bola. O Isaac começou a pisotear o troféu. — Isso! — disse o Augustus. — Acabe com
ele! — E, se virando para mim: — Já faz algum tempo que venho procurando uma forma de dizer ao meu pai que, na verdade, eu meio que odeio basquete, e acho que encontrei.
Os troféus vieram todos abaixo, um a um, e o Isaac pulava neles e gritava enquanto o Augustus e eu mantínhamos uma certa distância, as testemunhas daquela insanidade. Corpos mutilados de jogadores de basquete de plástico lotaram o chão acarpetado: num canto, uma bola sendo espalmada por uma mão sem corpo; no outro, duas pernas sem tronco no meio de um salto. O Isaac continuou atacando os troféus, pulando neles com os dois pés, gritando, ofegante, suado, até que, por fim, cansou e caiu em cima dos destroços.
O Augustus deu um passo na direção dele e olhou para baixo.
— Está se sentindo melhor? — perguntou.
— Não — murmurou o Isaac, o peito inflando por causa da respiração ofegante.
— Esse é o problema da dor — o Augustus disse, e aí olhou para mim.
— Ela precisa ser sentida. 

A CENA FICA ESCURA E O LIVRO SE FECHA
FIM DO CAPITULO

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

A Culpa é das Estrelas - Capítulo 3


Fiquei acordada até bem tarde lendo O preço do alvorecer. (Para acabar com o suspense: o preço do alvorecer é o sangue.) Não era nenhum Uma aflição imperial, mas o protagonista, o Sargento Max
Mayhem, era ligeiramente simpático, apesar de ter matado, pelas minhas contas, nada menos que cento e dezoito indivíduos em duzentas e oitenta quatro páginas.
Por isso acordei tarde na manhã seguinte, uma quinta-feira. Minha mãe seguia a seguinte política: nunca me acordar, pois um dos pré-requisitos do Doente Profissional é dormir muito. O que me deixou meio confusa, num primeiro momento, quando fui despertada pelas mãos dela em meus ombros.

— São quase dez horas da manhã — ela disse.
— O sono combate o câncer. Fiquei acordada até tarde lendo.
— Deve ser um livro e tanto — ela disse ao se ajoelhar ao lado da cama e me desconectar do enorme concentrador de oxigênio retangular, que eu chamava de Felipe, porque simplesmente tinha cara de Felipe.
Mamãe me conectou a um cilindro portátil e me lembrou que eu tinha aula.
— Foi aquele menino que deu isso para você? — ela perguntou.
— Com isso você quer dizer herpes?
— Você é impossível — mamãe comentou. — O livro, Hazel. Estou falando do livro.
— Sim, ele me deu o livro.
— Está na cara que você gosta dele — ela falou, as sobrancelhas arqueadas, como se uma observação dessas dependesse exclusivamente de um instinto maternal.
Dei de ombros.
— Eu disse que o Grupo de Apoio acabaria valendo a pena — continuou ela.
— Você ficou esperando lá fora o tempo todo?
— Fiquei. Levei coisas para ler. Mas isso não vem ao caso. Hora de sair para aproveitar o dia, minha jovem.
— Mãe. Dormir. Combate. Câncer.
— Eu sei, querida, mas você tem aula agora. Além disso, hoje é… — A alegria na voz da mamãe era evidente.
— Quinta-feira?
— Você esqueceu, de verdade?
— Talvez?
— Hoje é quinta-feira, vinte e nove de março — ela disse aquilo quase gritando, o sorriso estampado no rosto.
— Você parece estar muito feliz só de saber que dia é hoje  — gritei também.
— HAZEL! HOJE É SEU TRIGÉSIMO TERCEIRO MEIO ANIVERSÁRIO!
— Ahhhhh! — falei. Minha mãe era totalmente adepta da prática de maximizar as celebrações de datas comemorativas. 

HOJE É O DIA DA ÁRVORE! VAMOS ABRAÇAR ÁRVORES E COMER BOLO! COLOMBO TROUXE VARÍOLA PARA OS NATIVOS DA AMÉRICA; PRECISAMOS FESTEJAR A DATA COM UM PIQUENIQUE! etc. — Já que é assim, feliz trigésimo terceiro meio aniversário para mim — completei.

— O que você quer fazer neste dia tão especial?
— Voltar para casa depois da aula e assistir ao maior número possível de episódios de Top Chef de uma vez só para bater o recorde mundial nessa categoria?
Mamãe esticou o braço e pegou, da prateleira acima da minha cama, o Azulzinho, o urso de pelúcia azul que eu tinha desde, tipo, um ano de idade — quando ainda era socialmente aceitável dar para os bichos de pelúcia nomes inspirados na cor deles.
— Você não quer ir ao cinema com a Kaitlyn ou com o Matt? —
Esses eram meus amigos. Era uma ideia.
— Pode ser — respondi. — Vou mandar uma mensagem de texto para a Kaitlyn e ver se ela quer ir ao shopping ou fazer alguma coisa depois da aula.
Mamãe sorriu, abraçada ao urso.
— Ir ao shopping ainda é considerado um programa legal? — ela perguntou.
— Eu me orgulho muito de não saber o que é ou não é um programa legal — respondi.

Mandei um torpedo para a Kaitlyn, tomei banho, vesti uma roupa e mamãe me deu uma carona até a escola. A matéria do dia era Literatura
Norte-americana, uma aula sobre Frederick Douglass dada numa sala tipo anfiteatro praticamente vazia. Foi muito difícil manter os olhos abertos. Quarenta minutos depois de iniciada a aula de noventa minutos, a Kaitlyn respondeu.
Legal. Feliz Meio Aniversário. Castleton às 3h32? 

A Kaitlyn possuía uma vida social concorrida, organizada visando o melhor aproveitamento do tempo dela. Respondi:

Boa ideia. Te vejo na praça de alimentação. 

Mamãe me levou de carro direto da escola para a livraria ao lado do shopping, onde comprei tanto o Alvoradas à meia-noite quanto o Réquiem para Mayhem, os volumes seguintes da série "O preço do alvorecer".
Depois fui andando até a ampla praça de alimentação e comprei uma Coca Zero. Eram 3h21.
Enquanto lia, dei uma espiada nas crianças que brincavam num navio pirata na área de recreação do shopping. Duas atravessavam um túnel repetidas vezes, engatinhando, e não se cansavam daquilo, o que me fez lembrar do Augustus Waters e de seus lances livres carregados de existencialismo.
Mamãe também estava na praça de alimentação, sozinha, sentada em um canto, achando que eu não conseguia vê-la, comendo um sanduíche de filé com queijo e lendo alguns papéis. Artigos médicos, provavelmente.
Aquelas leituras pareciam não ter fim.
Às 3h32 em ponto, avistei Kaitlyn passando, confiante e decidida, em frente ao restaurante Wok House. Ela me viu quando levantei o braço, abriu um sorriso de dentes branquinhos e recém-alinhados, e veio andando na minha direção.
Ela estava com um casaco cinza-escuro que ia até o joelho, perfeitamente ajustado ao corpo, e óculos escuros que cobriam boa parte do rosto. Ela empurrou os óculos para o alto da cabeça quando se abaixou
para me abraçar.

— Amada — disse de um jeito levemente afetado. — Como vai?
Ninguém achava aquele modo de falar estranho nem se incomodava.
Acontece que a Kaitlyn era uma socialite britânica de vinte e cinco anos presa no corpo de uma adolescente de dezesseis e morando em Indianápolis. Todo mundo aceitava aquilo.
— Estou bem. E você?
— Nem sei mais. Isso é Coca Zero? — Fiz que sim com a cabeça e entreguei o copo para ela, que tomou um gole pelo canudo. — Eu adoraria que você estivesse indo à escola nos últimos tempos. Alguns dos meninos ficaram totalmente apetitosos.
— É mesmo? Tipo quem? — perguntei. Ela listou cinco garotos que foram da nossa turma na educação infantil e no ensino fundamental, mas não consegui me lembrar de nenhum deles.
— Estou saindo com o Derek Wellington já faz algum tempo — ela disse —, mas não acho que vá durar. Ele é tão infantil... Mas chega de falar de mim. Quais são as novidades no universo Hazel?
— Nenhuma, na verdade — respondi.
— A saúde está boa?
— Na mesma, acho.
— Falanxifor! — ela disse, entusiasmada, sorrindo. — Então você pode acabar vivendo para sempre?
— Talvez não para sempre — ponderei.
— Mas, praticamente — ela falou. — Nenhuma outra novidade?
Pensei em contar para ela que estava saindo com um garoto também, ou pelo menos que tinha assistido a um filme com ele, só porque sabia que o fato de alguém como eu, tão descuidada da aparência, dos bons modos e baixinha, poder, mesmo que por um breve momento, despertar o interesse de um garoto causaria surpresa e espanto na Kaitlyn. Mas não tinha muito do que me gabar, na verdade, então só dei de ombros.
— Céus, o que é isso? — ela perguntou, apontando para o livro.
— Ah, é ficção científica. Estou meio que curtindo sci-fi agora. É uma série.
— Estou chocada. Vamos fazer compras?

Fomos à sapataria. Enquanto escolhíamos os modelos, a Kaitlyn ia me mostrando sapatilhas abertas na frente e dizendo: "Essas ficariam lindas em você", o que me fez lembrar do fato de que ela nunca usava sandálias porque odiava os próprios pés. Achava que os dedos ao lado dos dedões eram compridos demais, como se fossem uma janela para a alma, ou coisa assim. Então, quando apontei para um par de sandálias que combinavam com seu tom de pele, a Kaitlyn reagiu com:
— É, mas… — O mas querendo dizer mas eles vão deixar meus dedos medonhos à mostra.
— Kaitlyn, você é a única pessoa que eu conheço que tem dismorfofobia do dedo do pé — falei, e ela perguntou:
— O que é isso?
— Sabe quando você olha no espelho e o que vê não é exatamente o que é de verdade?
— Ah. Ah — ela disse. — O que acha desses aqui? — Segurou um par de sapatos estilo boneca bonitinhos, mas nada de mais, eu fiz que sim com a cabeça, ela achou um par do tamanho dela, calçou e andou de um lado para outro pelo corredor da loja, olhando os pés refletidos num espelho que ia até a altura do joelho. Depois pegou um par de sapatos altíssimos, com várias tiras, à la prostituta, e perguntou: — Será humanamente possível andar com isso aqui? Quer dizer, eu simplesmente morreria… — E então parou no meio da frase e olhou para mim como que pedindo desculpas, como se mencionar a morte para quem está morrendo fosse algum tipo de crime. — Você deveria experimentá-los — continuou, tentando abafar o caso.
— Eu morreria mais rápido — garanti.
Acabei escolhendo um par de chinelos só para ter o que comprar, sentei num dos bancos em frente a uma prateleira cheia de sapatos e fiquei observando a Kaitlyn serpenteando pelos corredores da loja, escolhendo calçados com a intensidade e a concentração normalmente associadas ao xadrez profissional. Eu meio que queria tirar o Alvoradas à meia-noite da bolsa e ler um pouco, mas sabia que isso não seria muito educado de minha parte, então fiquei só olhando a Kaitlyn. De vez em quando ela ia até onde eu estava, carregando algum sapato fechado, e perguntava: "Esse?", e eu tentava fazer algum comentário inteligente sobre ele, até que, por fim, ela comprou três pares e eu, meus chinelos.
Enquanto saíamos da loja, ela perguntou:
— Vamos à Anthropologie agora?
— Está na hora de ir para casa, na verdade — falei. — Estou meio cansada.
— Claro, sem problemas — ela disse. — Preciso vê-la mais vezes, amada. — Colocou as mãos nos meus ombros, beijou minhas bochechas e bateu em retirada, rebolando os quadris.
Só que não fui para casa. Pedi para a mamãe me buscar às seis, e mesmo sabendo que ela deveria estar ou dentro do shopping ou no estacionamento, ainda queria as duas horas seguintes só para mim.
Eu gostava da minha mãe, mas a proximidade perpétua dela às vezes me deixava estranhamente nervosa. Também gostava da Kaitlyn. De verdade. Mas, depois de três anos afastada da convivência em tempo integral com meus colegas de turma, era como se uma distância intransponível tivesse se estabelecido entre nós. Acho que meus amigos da escola queriam me ajudar a superar essa fase do câncer, mas acabaram percebendo que não era possível. Pelo simples fato de não ser uma fase.
Então me safei usando a velha desculpa da dor e do cansaço, como fiz várias vezes nos últimos anos quando saía com a Kaitlyn ou com algum dos outros. Na verdade, sempre doía. Sempre doía não respirar como uma pessoa normal, tendo a toda hora de lembrar a seus pulmões que eles devem agir como pulmões, fazendo força para aceitar como insolúvel a dor lancinante que vem lá de dentro por causa da falta de oxigenação. Eu não estava mentindo de todo. Estava só escolhendo uma das verdades.
Achei um banco entre uma loja de suvenires irlandeses, chamada Fountain Pen Emporium, e uma loja de bonés de beisebol — um canto do shopping que nem mesmo a Kaitlyn frequentaria, e comecei a ler o
Alvoradas à meia-noite.
O livro tinha uma taxa de condenação-a-cadáver de quase 1:1, e eu o devorei sem tirar os olhos da página uma vez sequer. Gostava do Sargento Max Mayhem, mesmo a conduta dele não sendo muito "técnica", mas o que eu gostava, principalmente, era das suas aventuras, que não paravam de acontecer. Sempre havia mais caras do mal para matar e mais caras do bem para salvar. Novas guerras começavam antes mesmo de as antigas serem ganhas. Eu não lia uma série de verdade assim desde pequena, e estava animada por viver de novo numa ficção infinita.
A vinte páginas do fim do Alvoradas à meia-noite as coisas começaram a ficar um tanto ruins para o lado do Mayhem, quando ele foi atingido dezessete vezes na tentativa de resgatar uma refém (loira, norte-americana) que estava nas mãos do inimigo. Mas, no papel de leitora, não me desesperei. O esforço de guerra continuaria sem ele. Poderiam ser — e seriam — feitas continuações da história estrelando seus companheiros de grupo: o recruta Manny Loco, o soldado Jasper Jacks e os outros.
Eu estava para terminar o livro quando uma menininha de tranças surgiu na minha frente e perguntou:

— O que é isso no seu nariz?
— Humm. O nome disso é cânula. Esses tubos me dão oxigênio e me ajudam a respirar — respondi.
A mãe dela tomou a frente e disse:
— Jackie — demonstrando total desaprovação.
Mas eu falei:
— Não, não, está tudo bem. — Porque estava tudo bem mesmo.
E quando a Jackie perguntou:
— Eles me ajudariam a respirar também?
Respondi:
— Não sei. Vamos tentar.
Tirei a cânula e deixei a Jackie enfiá-la no nariz e respirar.
— Faz cosquinha — ela disse.
— Faz, não faz?
— Acho que estou respirando melhor — ela comentou.
— Mesmo?
— Mesmo.
— Bom — falei. — Eu gostaria de poder dar minha cânula para você, mas eu meio que preciso muito mesmo da ajuda dela.
Já começava a sentir falta de ar. Concentrei toda a atenção na minha respiração enquanto Jackie me devolvia os tubos. Dei uma limpadinha básica neles com a minha camiseta, encaixei-os atrás das orelhas e enfiei o cateter nas narinas.
— Obrigada por me deixar experimentar — ela disse.
— De nada.
— Jackie — a mãe falou de novo, e dessa vez eu a deixei ir.
Voltei para o livro, onde o Sargento Max Mayhem se lamentava por ter apenas uma vida para dar por seu país, mas continuei pensando na menininha e no quanto tinha gostado dela.
A outra coisa estranha em relação à Kaitlyn, acho, era que conversar com ela não parecia mais uma coisa natural. Quaisquer tentativas de simular interações sociais normais eram deprimentes porque ficava óbvio que todo mundo com quem eu falava em qualquer momento da minha vida se sentia constrangido e desconfortável comigo, exceto talvez crianças como a Jackie, que simplesmente não sabem nada da vida como ela é.
De qualquer forma, eu gostava mesmo de ficar sozinha. Gostei de ficar sozinha com o pobre Sargento Max Mayhem, que —
ai, peraí, ele não vai sobreviver a dezessete ferimentos a bala, vai? (Para acabar com o suspense: ele sobrevive.)

A CENA FICA ESCURA E O LIVRO SE FECHA
FIM DO CAPITULO

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

A Culpa é das Estrelas - Capítulo 2


Augustus Waters dirigia muito mal. Tanto na freada quanto na arrancada, dava sempre um TRANCO enorme. Eu voava de encontro ao cinto de segurança da caminhonete Toyota toda vez que ele freava, e meu pescoço chicoteava para trás quando o pé ia para o acelerador. Eu deveria estar nervosa — sentada no carro de um estranho, indo para a casa dele, perfeitamente ciente do fato de que meus pulmões de araque iriam dificultar quaisquer esforços para evitar avanços indesejados —, mas ele dirigia tão mal que eu não conseguia pensar em outra coisa.
Tínhamos percorrido quase uns dois quilômetros em silêncio, ouvindo só os barulhos do carro, quando o Augustus disse:


— Fui reprovado três vezes no teste de direção.
— Não diga.
Ele riu e balançou a cabeça.
— É que eu não consigo sentir nada com a boa e velha prótese aqui, e não me acostumo a dirigir com o pé esquerdo. Meus médicos disseram que a maioria dos amputados consegue dirigir sem problemas, mas… bem.
Não é o meu caso. Aí eu cheguei para o meu quarto teste de direção e ele rolou mais ou menos como agora. — Quase um quilômetro à frente o sinal ficou vermelho. O Augustus pisou fundo no freio, me atirando num abraço triangular com o cinto de segurança. — Foi mal. Juro por Deus que estou tentando fazer tudo devagar. Mas, aí, no fim do teste, eu estava certo de que tinha sido reprovado de novo, e o instrutor disse: "Seu jeito de dirigir é incômodo, mas não é arriscado, tecnicamente falando." — Não sei se concordo com ele — falei. — Acho que foi mais um caso de "privilégio do câncer".
Os "privilégios do câncer" são pequenas coisas que as crianças com a doença recebem e as saudáveis, não: bolas de basquete autografadas por ídolos do esporte, perdão pelo atraso na entrega do dever de casa, carteiras de motorista não merecidas etc.
— É — ele disse.
O sinal ficou verde. Segurei firme no banco. O Augustus meteu o pé no acelerador.
— Você sabe que existem controles manuais para pessoas que não podem dirigir usando os pedais? — perguntei.
— Sei — ele respondeu. — Quem sabe algum dia?
E suspirou de um jeito que me fez pensar se ele achava que esse algum dia ia chegar. Eu sabia que o osteossarcoma tinha uma probabilidade de cura muito grande, mas, mesmo assim…
Existem várias maneiras de estabelecer a expectativa de vida aproximada de alguém sem perguntar isso diretamente. Eu fui pela mais tradicional.
— Então, você estuda?
Normalmente seus pais tiram você da escola quando já estão esperando que bata as botas.
— Estudo — ele respondeu. — Na North Central. Mas estou atrasado um ano, dei uma parada no segundo. E você? Pensei em mentir. Afinal de contas, ninguém se interessa por um cadáver ambulante. Mas acabei dizendo a verdade.
— Não. Meus pais me tiraram da escola há três anos.
— Três anos? — ele perguntou, boquiaberto.
Contei ao Augustus a versão resumida do meu milagre: diagnosticada com câncer de tireoide em estágio IV aos treze anos. (Não contei que o diagnóstico veio três meses depois da minha primeira menstruação. Tipo:
Parabéns! Você já é uma mulher. Agora morra.) E, foi o que nos disseram, era incurável.
Passei por uma cirurgia chamada dissecação radical do pescoço, tão desagradável quanto o nome. Depois, radioterapia. Aí tentaram quimioterapia para os tumores no pulmão, que diminuíram num primeiro momento, mas cresceram de novo. Nessa época eu já tinha quatorze anos. Meus pulmões começaram a se encher de líquido. Basicamente, eu parecia uma morta-viva — as mãos e os pés inchados como balões, a pele rachada, os lábios sempre roxos. Existe um remédio que faz você não ficar totalmente apavorado pelo fato de não conseguir respirar, e eu tinha uma grande quantidade dele fluindo dentro de mim por um cateter central inserido perifericamente— PICC, para os íntimos — e mais de uma dezena de outros medicamentos. Mesmo assim, a sensação de afogamento é meio desagradável, principalmente quando dura vários meses. Por fim, acabei na UTI com pneumonia, e minha mãe se ajoelhou ao lado do meu leito e perguntou: "Você está pronta, querida?" Eu respondi que estava, e meu pai ficava repetindo que me amava com aquela voz embargada de sempre, e eu dizia que o amava também, e todo mundo de mãos dadas, eu sem conseguir respirar, meus pulmões funcionando no desespero, sem fôlego, me forçando a me ajeitar para tentar achar uma posição que permitisse que ar entrasse, eu constrangida pelo desespero dos me
us pulmões começaram a se encher de líquido. Basicamente, eu parecia uma morta-viva — as mãos e os pés inchados como balões, a pele rachada, os lábios sempre roxos. Existe um remédio que faz você não ficar totalmente apavorado pelo fato de não conseguir respirar, e eu tinha uma grande quantidade dele fluindo dentro de mim por um cateter central inserido perifericamente— PICC, para os íntimos — e mais de uma dezena de outros medicamentos. Mesmo assim, a sensação de afogamento é meio desagradável, principalmente quando dura vários meses. Por fim, acabei na UTI com pneumonia, e minha mãe se ajoelhou ao lado do meu leito e perguntou: "Você está pronta, querida?" Eu respondi que estava, e meu pai ficava repetindo que me amava com aquela voz embargada de sempre, e eu dizia que o amava também, e todo mundo de mãos dadas, eu sem conseguir respirar, meus pulmões funcionando no desespero, sem fôlego, me forçando a me ajeitar para tentar achar uma posição que permitisse que ar entrasse, eu constrangida pelo desespero dos meus pulmões, passada por eles não desistirem, simplesmente, e me lembro da minha mãe dizendo que estava tudo bem, que eu estava bem, que eu ficaria bem, e do meu pai fazendo um esforço tão grande para não chorar que, quando caía no choro, o que acontecia com frequência, parecia um terremoto. E me lembro de não querer ficar acordada.
Todo mundo achou que aquele fosse meu fim, mas minha médica do câncer, Maria, conseguiu drenar um pouco do líquido dos pulmões e, logo depois, os antibióticos que eu tomava para tratar a pneumonia começaram a fazer efeito.
Acordei e logo entrei num daqueles testes clínicos com remédios experimentais que são famosos na República da Cancervânia por não funcionarem. A droga se chamava Falanxifor, uma tal de molécula projetada para grudar nas células cancerosas e diminuir a velocidade de multiplicação delas. Não funcionava em mais ou menos 70% das pessoas. Mas funcionou em mim. Os tumores reduziram de tamanho.
E continuaram reduzidos. Viva o Falanxifor! Nos últimos dezoito meses minhas metástases quase não aumentaram, deixando para mim pulmões que são péssimos, mas que poderiam, a princípio, continuar funcionando indefinidamente no sacrifício com o auxílio da chuvinha de oxigênio e de doses diárias de Falanxifor.
Devo confessar que a história de milagre do meu câncer só resultou em um pequeno ganho de tempo. (Eu só não sabia ainda quão pequeno.) Mas, enquanto contava tudo ao Augustus Waters, pintei o quadro mais
otimista possível, ressaltando a miraculosidade do milagre.— Então você precisa voltar a estudar — ele disse.
— Na verdade, não dá — expliquei —, porque já peguei meu certificado de conclusão do ensino médio. Por isso tenho assistido às aulas no MCC. — Que é a faculdade comunitária da cidade.
— Uma universitária — ele disse, balançando a cabeça. — Isso explica a aura de sofisticação.
Ele abriu um sorriso afetado. Dei um empurrão no seu braço, de brincadeira. E pude sentir o músculo logo abaixo da pele, todo contraído e incrível.
Fizemos uma curva cantando pneu e entramos em um loteamento com muro emboçado de dois metros e meio de altura. A casa dele era a primeira à esquerda. Estilo colonial, dois andares. Paramos, com um tranco, na entrada de carros.
Fui atrás dele até dentro da casa. Uma placa de madeira, no hall, tinha gravadas com letras cursivas as palavras O lar é onde fica o coração,e acabou que a casa toda era enfeitada com dizeres desse tipo.
Amigos de verdade são difíceis de encontrar e impossíveis de esquecer, afirmava uma ilustração acima do cabideiro. O verdadeiro amor nasce em tempos difíceis, prometia uma almofada bordada na sala de estar cheia de móveis antigos. O Augustus me pegou lendo.
— Meus pais chamam isso de Encorajamentos — explicou. — Estão espalhados por toda parte.

O pai e a mãe dele o chamavam de Gus. Estavam preparando enchiladas na cozinha (escrita em letras gordinhas num vidro jateado perto da pia estava a frase Família é para sempre). A mãe colocava frango nas tortillas, que o pai enrolava e botava num pirex. Eles não pareceram muito surpresos com a minha chegada, o que fazia sentido: o fato de o Augustus me fazer sentir especial não queria necessariamente dizer que eu era especial. Talvez ele levasse uma garota nova todas as noites para ver um filme e se aproveitar dela.

— Esta é Hazel Grace — ele disse, me apresentando formalmente.
— Só Hazel — falei.
— Como vai, Hazel? — o pai perguntou. Ele era alto, quase tão alto quanto o Gus, e magro de um jeito que pais mais velhos normalmente não são.
— Tudo bem — respondi.
— Como foi lá no Grupo de Apoio do Isaac?
— Foi inacreditável — disse o Gus.
— Você é um tremendo desmancha-prazeres — a mãe disse. —Hazel, você gosta de lá?
Fiquei em silêncio por um segundo, tentando decidir se minha resposta deveria ser calculada para agradar ao Augustus ou aos pais dele.
— A maioria das pessoas é bem legal — falei, por fim.
— Foi exatamente o que achamos das famílias no Memorial quando estávamos no meio do tratamento do Gus — o pai dele disse. — Todomundo era muito gentil. Forte, também. Nos dias mais sombrios, o Senhor
coloca as melhores pessoas na sua vida.
— Rápido, cadê a almofada e a linha, porque isso precisa virar um Encorajamento — o Augustus disse, e o pai pareceu ficar um pouco chateado, mas aí ele passou o braço comprido em volta do pescoço do
homem e falou:
— Só estou brincando, pai. Eu gosto desses malditos Encorajamentos. De verdade. Só não posso admitir isso porque sou adolescente. — O pai dele revirou os olhos.
— Você vai ficar para o jantar? — a mãe me perguntou. Ela era baixa, morena e tinha as feições de uma ratinha.
— Acho que sim — respondi. — Tenho de estar em casa às dez. Ah, só tem uma coisa… Eu não como carne…
— Não tem problema. Vamos vegetarianizar algumas delas — ela disse.
— Os animais são fofos demais? — o Gus perguntou.
— Quero diminuir a quantidade de mortes pelas quais sou responsável — falei.
O Gus abriu a boca para fazer um comentário mas pensou duas vezes e continuou calado.
A mãe dele preencheu o silêncio.
— Pois eu acho isso uma coisa maravilhosa.
Eles conversaram um pouco comigo, me contando que as enchiladas eram as Famosas e Impossíveis de Não Experimentar Enchiladas Waters,e que o toque de recolher do Gus também era às dez, e que eles desconfiavam totalmente de qualquer um que estabelecesse um toque de recolher diferente de dez, comentando o fato de eu estar estudando — "ela é universitária", o Augustus exclamou —, de o clima estar absolutamente magnífico para março, e de como na primavera tudo era renovado, e em nenhum momento fizeram qualquer pergunta sobre o oxigênio ou sobre meu diagnóstico, o que era ao mesmo tempo estranho e maravilhoso, e aí o Augustus disse:
— A Hazel e eu vamos assistir ao V de Vingança para que ela possa ver a doppelgänger cinematográfica dela, a Natalie Portman do século vinte e um.
— A sala de estar é toda de vocês — o pai dele disse, todo alegrinho.
— Na verdade, acho que vamos ver o filme lá no porão.
O pai dele riu.
— Boa tentativa. Sala de estar.
— Mas eu quero mostrar o porão para a Hazel Grace — o Augustus disse.
— Só Hazel — falei.
— Então mostre o porão para a Só Hazel — o pai dele disse. — E depois volte aqui para cima e assista ao seu filme na sala de estar.
O Augustus bufou, se equilibrou na perna e girou o quadril, jogando a prótese para a frente.
— Tá bem — resmungou.
Desci as escadas acarpetadas atrás dele até chegarmos a um enorme quarto-porão. No nível dos meus olhos, uma prateleira lotada de memorabilia de basquete se estendia pelas paredes de todo o cômodo:
dezenas de troféus com homenzinhos de plástico dourado no meio de saltos com arremesso, driblando ou voando em enterradas em cestas invisíveis. Também havia várias bolas e tênis autografados.
— Eu jogava basquete — ele explicou.
— Você devia ser muito bom.
— Não era de todo ruim, mas esses tênis e essas bolas são Privilégios do Câncer. — Ele andou até a TV, onde uma pilha enorme de DVDs e videogames estava arrumada num formato que lembrava uma pirâmide.
Dobrou o corpo na linha da cintura e puxou de lá o V de Vingança. — Eu era, tipo, o protótipo do jogador de basquete estudantil de Indiana — ele disse. — Estava todo empenhado em ressuscitar a arte esquecida do arremesso de meia distância. Mas, um dia, enquanto praticava arremessos livres da cabeça do garrafão na quadra do ginásio da North Central, pegando as bolas de um carrinho, de repente me perguntei por que estava jogando um objeto esférico através de outro, toroidal. Parecia ser, de todas, a coisa mais idiota do mundo. Aí comecei a pensar nas crianças pequenas que tentam encaixar blocos cilíndricos em círculos vazados e em como tentam isso várias vezes durante meses até descobrirem como se faz, e em como o basquete era basicamente uma versão só um pouquinho mais aeróbica desse mesmo exercício. Bem, de qualquer forma, por um tempão segui encestando os lances livres. Acertei oito bolas seguidas, meu recorde absoluto, mas, enquanto continuava, me sentia cada vez mais como uma criança de dois anos. E aí, por algum motivo que não sei qual, comecei apensar em atletas que praticam corridas com obstáculos. Está tudo bem?
Eu tinha me sentado na beira da cama desarrumada dele. Não queria me insinuar, nem nada; é que me canso um pouco toda vez que fico muito tempo de pé. Já tinha ficado em pé na sala de estar, depois desci a escada, e aí fiquei de pé de novo, o que era demais para mim, e não queria desmaiar. Eu era tipo uma donzela vitoriana, no quesito "desmaios à toa".

— Tudo bem — falei. — Só estou prestando atenção em você. Atletas que praticam corridas de obstáculos?
— Pois é. Não sei por quê. Comecei a pensar neles correndo naquelas pistas de atletismo, saltando aqueles objetos totalmente arbitrários colocados no meio do caminho. E aí me perguntei se esses corredores já teriam pensado em algo como: Essa corrida seria mais rápida se nós simplesmente nos livrássemos dos obstáculos.
— E isso foi antes do diagnóstico? — perguntei.
— É, bem, tem isso também. — Ele deu um sorrisinho. — Por coincidência, o dia dos lances livres carregados de existencialismo foi meu último como bípede. Só tive um fim de semana entre o agendamento da amputação e o "dia D". Meu vislumbre particular do momento pelo qual o Isaac está passando agora.
Balancei a cabeça, concordando. Eu gostava do Augustus Waters.
Gostava muito mesmo dele. Gostava de como a história dele terminava falando de outra pessoa. Gostava da voz dele. Gostava do fato de ele ter feito lances livres carregados de existencialismo. Gostava de ele ser
professor titular no Departamento de Sorrisos Ligeiramente Tortos com duas cátedras no Departamento da Voz Que Me Deixa à Flor da Pele. E gostava de ele ter um apelido. Sempre gostei de pessoas com apelidos porque você pode escolher como chamá-las: Gus ou Augustus? Eu era sempre só Hazel, uma Hazel univalente.
— Você tem irmãos? — perguntei.
— Hein? — ele murmurou, parecendo um pouco distraído.

— Aquilo que você disse sobre ver crianças brincando.
— Ah, não. Eu tenho sobrinhos, das minhas meias-irmãs. Mas elas são mais velhas. Elas têm… PAI, QUANTOS ANOS A MARTHA E A JULIE TÊM?
— Vinte e oito!
— Elas têm vinte e oito anos. Moram em Chicago. As duas são casadas com advogados muito importantes. Ou banqueiros. Não lembro direito. E você, tem irmãos?
Fiz que não com a cabeça.
— E aí? Qual é a sua história? — ele perguntou, sentando do meu lado, a uma distância segura.
— Já contei minha história para você. Fui diagnosticada quando…
— Não, não a história do seu câncer. A sua história. Seus interesses, passatempos, paixões, fetiches etc.
— Humm — murmurei.
— Não vá me dizer que você é uma daquelas pessoas que encarnam a doença. Conheço tanta gente assim… Dá até pena. Tipo, o câncer é um negócio em franco crescimento, certo? O negócio de tomar-as-pessoas-de assalto. Mas é claro que você não deixou que ele saísse vencedor assim tão cedo.
Passou pela minha cabeça a ideia de que talvez eu tivesse deixado, sim. Demorei a decidir como me vender para o Augustus Waters, que interesses selecionar, mas no silêncio que se seguiu só consegui pensar que eu não era muito interessante.
— Não tenho nada de extraordinário.
— Eu me recuso a acreditar nisso. Pense em alguma coisa de que você goste. A primeira coisa que vier à cabeça.
— Humm. Ler?
— O que você gosta de ler?
— Tudo. De, tipo, romances hediondos a ficção pretensiosa, poesia.
De tudo um pouco.
— Você também escreve poesia?
— Não. Eu não escrevo.
— Taí! — O Augustus falou quase gritando. — Hazel Grace, você é a única adolescente nos Estados Unidos que prefere ler poesia a escrever poesia. Só isso já diz muito sobre a sua pessoa. Você lê um monte de livros maneiros com M maiúsculo, não lê?
— Acho que sim.
— Qual é o seu livro favorito?
— Humm — murmurei.

Meu livro favorito era, de longe, Uma aflição imperial, mas eu não gostava de falar dele. Às vezes, um livro enche você de um estranho fervor religioso, e você se convence de que esse mundo despedaçado só vai se
tornar inteiro de novo a menos que, e até que, todos os seres humanos o leiam. E aí tem livros como Uma aflição imperial, do qual você não consegue falar — livros tão especiais e raros e seus que fazer propaganda
da sua adoração por eles parece traição.
Não era nem pelo fato de o livro ser bom nem nada; era só porque oautor, Peter Van Houten, parecia me entender dos modos mais estranho se improváveis. Uma aflição imperial era o meu livro, do mesmo jeito que meu corpo era meu corpo e meus pensamentos eram meus pensamentos.
Mesmo assim, falei dele para o Augustus.

— Meu livro favorito é, provavelmente, Uma aflição imperial — eudisse.
— Tem zumbis? — ele perguntou.
— Não — respondi.
— Stormtroopers?
Balancei a cabeça negativamente.
— Não é esse tipo de livro.
Ele sorriu. 

— Vou ler esse livro horrível com um título sem graça que não contém stormtroopers — ele prometeu, e imediatamente senti que não deveria ter lhe contado. O Augustus se virou para uma pilha de livros na parte de baixo da mesa de cabeceira. Pegou um deles e uma caneta. Enquanto escrevia algo na primeira página, falou: — Tudo o que peço em troca é que você leia esta adaptação brilhante e memorável do meu videogame favorito. — Ele me estendeu o exemplar, cujo título era O preço do alvorecer.
Ri e peguei-o.
Nossos dedos meio que se embaralharam no processo e no fim ele acabou segurando minha mão.
— Fria — ele disse, o dedo apertando meu pulso pálido.
— Mais desoxigenada que fria — falei.
— Adoro quando você usa termos médicos comigo — ele disse, se levantando e me puxando junto. E não soltou minha mão até chegarmos à escada.
 
Vimos o filme com vários centímetros de sofá entre nós. Dei uma de pré-adolescente colocando a mão no sofá na metade do caminho para deixar claro que ele podia me dar a mão se quisesse, mas ele não fez nada.
Depois de uma hora de filme, seus pais entraram e nos serviram as enchiladas, que comemos no sofá, e estavam uma delícia.
O filme era sobre um tipo heroico e mascarado que morria heroicamente por Natalie Portman, uma garota durona e muito sexy que não tem nada a ver com a minha cara estufada de esteroides.
Enquanto rolavam os créditos, ele disse:


— Muito maneiro, né?
— Muito maneiro — concordei, mesmo não sendo. Sério. Era um filme do tipo que só agrada garotos. Não sei por que os meninos esperam que gostemos desses filmes. Nós, meninas, não temos expectativa nenhuma de que eles gostem dos nossos tipos de filme.
— Preciso ir para casa. Tenho aula de manhã — falei.
Fiquei sentada no sofá por um tempo enquanto o Augustus procurava as chaves. A mãe dele se sentou ao meu lado e disse:
— Adoro esse aí. E você?
Acho que eu estava olhando fixamente para o Encorajamento acima da TV, a ilustração de um anjo com a legenda: Sem dor, como poderíamos
reconhecer o prazer?

(Essa é uma discussão antiga no campo das Reflexões Sobre o Sofrimento, e a ignorância e a ausência de sofisticação da frase poderiam ser analisadas por vários séculos, mas é suficiente dizer que a existência do
brócolis não afeta de forma alguma o gosto do chocolate.)
— É — falei. — Um pensamento agradável.
Fui dirigindo o carro do Augustus até a minha casa, ele no banco do carona. Ele tocou para mim algumas músicas de que gostava, de um grupo chamado The Hectic Glow, e eram boas, mas como eu não conhecia, não causaram em mim o mesmo efeito que nele. De vez em quando eu dava uma olhada na perna do Augustus, ou no lugar onde ela costumava ficar, tentando imaginar como seria a aparência da perna falsa. Não queria dar muita bola para aquilo, mas dava um pouco. E ele devia sentir a mesma coisa em relação ao meu oxigênio. A doença gera repulsa. Aprendi isso há muito tempo, e achava que o Augustus também tinha aprendido.
Quando encostei o carro em frente à minha casa, o Augustus desligou o rádio. O clima ficou tenso. Ele devia estar pensando em me beijar, e eu com certeza estava considerando essa possibilidade. Fiquei me perguntando se era o que eu queria. Já tinha beijado alguns garotos, mas fazia algum tempo. Na era pré- milagre.
Coloquei a marcha do carro em ponto morto e olhei para ele. Como era belo. Sei que este não é o adjetivo mais usado para elogiar a beleza de um garoto, mas ele era.

— Hazel Grace. — Meu nome soando inédito e muito mais bonito na voz dele. — Foi um prazer inenarrável conhecê-la.
— Igualmente, Sr. Waters — falei.
E fiquei envergonhada ao olhar para ele. Não era páreo para a intensidade daqueles olhos azul-piscina.
— Podemos nos ver de novo? — perguntou, e havia um nervosismo fofo na voz dele.
Sorri.
— Claro.
— Amanhã?
— Paciência, Gafanhoto — aconselhei. — Assim vai parecer que você está ansioso demais.
— Exatamente. Foi por isso que falei "amanhã". Quero ver você de novo hoje à noite. Mas estou disposto a esperar a noite toda e boa parte do dia de amanhã.
Revirei os olhos.
— Estou falando sério — ele disse.
— Você nem me conhece direito. — Peguei o livro de dentro do console. — Que tal se eu ligar para você assim que acabar de ler isto?
— Mas você não sabe qual é o número do meu telefone — ele disse.
— Tenho motivos para acreditar que você anotou o número no livro. Ele abriu aquele sorriso meio bobo.
— E você ainda diz que a gente não se conhece direito. 

A CENA FICA ESCURA E O LIVRO SE FECHA
FIM DO CAPÍTULO